“Essa história foi originalmente publicada como parte do projeto Plataforma Global de Justiça Climática”

Me chamo Gabriela Alves, sou uma mulher preta e com 24 anos. Cresci e fui criada entre duas periferias: Jaraguá e a Brasilândia, bairros da Zona Norte de São Paulo. Durante a minha criação, estive em uma comunidade vertical, os famosos Conjuntos Habitacionais. E meu sonho era ir embora dali. As favelas parecem um lugar para ir embora, não para cultivar seus sonhos.
No Ensino Médio, descobri que queria mudar o mundo. Mas aos 15 anos você não consegue fazer muito, pelo menos não sozinha. Estudei em uma escola pública que mal tinha aula de matemática e muito menos infraestrutura, mas foi lá que descobri que poderia conquistar novos espaços.
Uma professora de Sociologia me abria a cabeça a cada aula, eu pensava em como  o mundo era complexo e tinha tanta coisa que não sabia. A cereja do bolo foi quando ela conseguiu levar todos os alunos para assistir uma aula aberta na PUC e na USP. Nossa, estar na faculdade me tirou do chão. As pessoas inteligentes andando pelo corredor, os professores com aulas que me deixavam boba de tão boas que eram. Era o meu lugar, eu dizia a mim mesma.

Crédito da foto: arquivo pessoal


Quando me formei no Ensino Médio fiquei um ano trabalhando, precisava ajudar em casa. Nos últimos meses antes do ENEM, consegui pagar um cursinho popular com meu salário de Jovem Aprendiz e passei para a Ciências Sociais na UNIFESP. Lembram daquela menina que queria mudar o mundo? Foi por isso que ela escolheu Ciências Sociais.
Entrei na faculdade com o sonho romântico de que agora eu poderia fazer alguma coisa, e finalmente mudar o mundo. Mas óbvio que o balde de água fria iria cair sobe minha cabeça, afinal mudar o mundo era coisa que não pagaria os meus boletos. Aos poucos, silenciei essa vocação do coletivo.
Terminei a faculdade, consegui um trabalho com Inovação Social e um dia desses, há quase um ano atrás, num dia daqueles bem normais, olhando no espelho senti falta da Gabriela que queria mudar o mundo. Eu nunca quis morar em um mundo em que só eu importava, que só eu iria conseguir passar em uma faculdade pública e encontrar um trabalho, em que só eu iria conseguir as coisas sozinhas, nem ser a única preta de destaque. Mas, agora adulta, como mudar o mundo e não romantizar isso? Como olhar esse sonho e pensar ‘sim, é empiricamente possível as coisas mudarem’.

Quando o ativismo me reencontrou

Eu acredito muito nas voltas que o mundo dá e como as coisas são atraídas divinamente. Retornei um contato antigo do Gabriel Medina, um homem mega articulado e que acreditava que eu poderia fazer alguma coisa. Ele também queria mudar o mundo. Mas na época, com a faculdade e com o meu coração partido, eu não conseguia canalizar esse sonho. Fomos tomar uma cerveja depois de tantos anos e ele me contou de um novo instituto que estava começando, chamado Perifa Sustentável. Ele disse que as meninas trabalhando lá tinham o mesmo sonho que eu, de mudar o mundo. Ele nos apresentou e foi aí que tudo se encaixou.
O Perifa Sustentável é um instituto com CNPJ e tudo mais, que estamos de verdade fundando. Mas pra mim, foi o chamado para o meu propósito. Comecei a estudar sobre as mudanças climáticas, coisa que jurava que não eram um problema sendo preta e periférica, mas que faziam todo o sentido para tudo que estava acontecendo no mundo. Explicava como as favelas sofrem o que sofrem, com as enchentes, deslizamentos e porque nós, pretos, sendo 54% da população brasileira ainda estamos marginalizados na cidade e no campo. Aprendi que isso tudo era racismo ambiental.
“Mas o que eu posso fazer com isso?” me questionava. A resposta era “não posso fazer nada… sozinha”. Foi no Perifa que aprendi a importância da rede e como isso é nadar contra a corrente de um mundo em que o umbigo é a meta.

Resistir é um ato cotidiano

Se a minha vida foi resistência, por estar viva como mulher preta aos 24 anos, aprendi que resistir mais ainda é construir essas redes e se articular para lutar. Lutar pra mim se tornou aprender, a viver em felicidade com o que eu quero, para onde eu quero ir e viajar e conhecer o mundo. Mas lutar também é entender os problemas que uma sociedade capitalista e egoica alimenta, onde a rede não é importante porque o trabalhador precisa ainda acordar às 5 da manhã e ir ao trabalho, onde a meta é ter um carro e uma casa. Não que isso não seja importante, mas isso não tem que ser o fim da vida. Essas coisas tem que ser os pormenores.
Lutar então é se incomodar com o Brasil voltar ao mapa da fome, é perceber que podemos até conquistar coisas, mas que nada vale de verdade se tem gente a sua própria existência é violada e ameaçada.
Se hoje eu posso continuar a resistir é porque aprendi a lutar e se aprendi a lutar é porque estou em rede. Me perguntam então como é o meu ativismo, e eu apenas respondo: “o meu ativismo foi desde 1998, quando ousei nascer em um país com tantos desafios e desigualdade e que consegui ter uma infância, consegui crescer, me formar mas que hoje faço questão de estar desenhando uma favela que não mais vai ter a miséria como característica e que o básica de uma vida digna será garantido.”

Minha história em poesia


Transcrição:

“A 350.org me convidou a pensar e contar minha história de resistência. 
Fiquei dias pensando nisso.
Sei lá, pensando na infância, na adolescência um pouco caótica … tentando me achar e não quer dizer que me achei, mas eu tenho liberdade de continuar essa busca, o que torna tudo mais interessante. 
Também pensei nos dados e o quanto eu acabei sendo resistência, afinal morre 01 jovem preto a cada 23 minutos no Brasil.. é, e eu estou viva. 
Dessa reflexão percebo que existir já é um ato de resistência quando você é preto e periférico… quando você passa a sonhar no coletivo… talvez existência seja isso: você cuidar de si e ser um todo.”